O algodão entre o Brasil e os EUA

Publicado em: 24 de fevereiro de 2014

* Sergio Leo

Ao reabrir, na semana passada, o processo na Organização Mundial do Comércio (OMC) contra os subsídios ilegais dos Estados Unidos aos produtores locais de algodão, o Brasil tem mais em jogo que uma disputa comercial. E a diplomacia brasileira passou bem no teste até agora.

Os EUA, obrigados pela OMC a rever seus programas de subsídio ilegais, aprovaram uma controversa lei agrícola que mantém apoio indevido à produção interna. E, desde outubro, não pagam a indenização aos produtores brasileiros que prometeram na OMC. Os produtores no Brasil pediram retaliação imediata aos americanos. Mas optou-se, em Brasília, por uma saída política.

“Os Estados Unidos querem negociar, senti boa disposição e é isso que me alenta a negociar também”, disse à coluna o ministro das Relações Exteriores, Luiz Alberto Figueiredo, que tem mantido conversas reservadas com o representante comercial da Casa Branca, Michael Froman, para atender às queixas dos produtores brasileiros. O ministro insiste: “Continuam sobre a mesa” as possíveis retaliações autorizadas pela OMC, que podem incluir até suspensão de pagamentos de patentes e royalties por remédios e produtos culturais, como filmes.

No começo da década passada, a ajuda do governo dos EUA chegou a garantir mais da metade das receitas dos produtores de algodão americano. Uma competição desleal com o resto do mundo, que motivou o Brasil a abrir – e vencer – a disputa na OMC contra a política americana para o algodão. No início deste mês, entretanto, o presidente Barack Obama sancionou a nova Lei Agrícola, graças aos poderosos lobbies no país, com novas regras de apoio à produção rural, que podem dar nova vida aos subsídios condenados pelas regras globais de comércio.

Desde o ano passado, o Brasil está autorizado a punir os americanos por manter essa ajuda ilegal, que distorce preços internacionais e prejudica produtores de algodão em todo o mundo. Retaliar seria um golpe forte numa relação que anda em fase delicada. Os ministros reunidos na Câmara de Comércio Exterior (Camex) decidiram, na semana passada, recorrer à própria OMC, reabrindo o caso com um “painel de implementação”, no qual especialistas da própria organização vão dizer se a nova lei dos EUA atende ou não às normas internacionais.

Nos últimos meses – e em conversa recente de Froman com Figueiredo -, os americanos têm dito que a nova lei foi o máximo que o governo americano conseguiu tirar de seu Congresso, em momento de difícil composição política. Autoridades dos EUA insinuam que uma retaliação do Brasil, especialmente no sensível campo da propriedade intelectual, poderia comprometer todo o esforço de normalizar as relações entre os dois países e dinamitar qualquer ponte a ser construída entre Washington e Brasília.

A nova lei agrícola americana, na avaliação de especialistas, só começa a fazer efeito em 2015, mas apenas troca a antiga política de preço mínimo (que garantia transferências de dinheiro público em caso de preços muito baixos) por uma nova, em que o governo subsidia um seguro aos produtores. Há, na equipe econômica, pouco entusiasmo com a ideia de perseguir uma disputa comercial com os EUA; mas aceitar sem reparos a decisão da Casa Branca sobre política agrícola seria desmoralizar o uso da OMC para defender os produtores brasileiros.

Ao recorrer novamente à OMC antes de qualquer retaliação, o Brasil evita ser acusado de agir discricionariamente. O próprio “xerife” do comércio internacional avaliará a ilegalidade da nova lei americana, e deve calcular o valor de prejuízo aos produtores de algodão brasileiro. Técnicos dos dois lados vão, agora, apresentar cálculos econométricos para apontar os efeitos da lei agrícola sancionada por Obama sobre o comércio internacional.

“Eles dizem que querem resolver, vamos sentar e conversar; mas com um pedido de painel na OMC”, resume Figueiredo. Na prática, o processo adia qualquer decisão para o segundo semestre, talvez para depois das eleições no Brasil, calcula o ex-secretário de Comércio Exterior Welber Barral, que assessora a Abrapa, organização dos produtores de algodão, na demanda contra os subsídios ilegais dos EUA. “A demanda da Abrapa era a retaliação; mas a associação apoia integralmente a continuidade do caso, que certamente dará vitória ao Brasil”, diz Barral.

O governo americano já usou demandas do gênero para negociar com o próprio Congresso cortes nos gastos orçamentários com agricultura. Na regulamentação da Lei Agrícola, poderá, com limites, reduzir o efeito negativo das novas regras sobre o comércio mundial, creem os brasileiros. A Abrapa reivindica a criação de uma comissão conjunta de monitoramento da aplicação da nova lei e do mercado do algodão, para impedir efeitos negativos nos preços.

A cautelosa administração do caso do algodão mostra que não é um suposto antiamericanismo o eixo da política externa em relação aos EUA. Curiosamente, enquanto se esforça para despolitizar a disputa comercial com os americanos, a presidente Dilma Rousseff, na cúpula Brasil-União Europeia, nesta semana, fará o contrário com os europeus. Pretende convencer os parceiros no Velho Continente que a recente decisão europeia de abrir um caso na OMC contra a política industrial brasileira, incluindo a Zona Franca de Manaus, ameaça negócios futuros do país com o bloco.

Figueiredo não comenta a viagem de Dilma, mas garante que o Mercosul chegou afinal, com concordância da Argentina, a uma proposta de abertura de mercado capaz de fazer avançar a negociação de livre comércio com os europeus. A ideia é reunir os negociadores antes da próxima cúpula do Mercosul, ainda sem data marcada. “O acordo União Europeia e Mercosul entra agora em fase decisiva”, garante o ministro.

*Sergio Leo é jornalista e especialista em relações internacionais pela UnB. Escreve às segundas-feiras

Fonte: Valor Econômico

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