Dia Mundial da Água – Pegada Hídrica

Publicado em: 21 de março de 2020

A marca que um pé deixa sobre a terra fofa ou na areia da praia nos fala de uma presença que talvez nem esteja mais lá, mas imprimiu um rastro, uma pegada. Uma evidência que, mesmo sem palavras, ajuda a reconstituir uma história: a velocidade do passo, o peso do corpo, o instante provável da passagem daquele pé por ali. Não por acaso, o termo “pegada” tem sido usado com frequência nas situações em que se avaliam os impactos, geralmente ambientais, decorrentes da produção de bens de consumo, ao longo de todo o ciclo de vida (ou a história) de um produto. Às vésperas do Dia Mundial da Água, nada mais natural que falar sobre pegada hídrica.

Há exatamente um ano, a Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa) se engajou a uma iniciativa que tinha por meta estimar o quanto de água representa a vida útil de uma calça jeans, desde a lavoura até o nosso guarda-roupas. O desafio foi proposto pelo movimento Ecoera, e encampado pela indústria têxtil Vicunha, junto com a consultoria em sustentabilidade H2O Company e a Iniciativa Verde. A Abrapa e suas estaduais contribuíram com informações sobre o modo de produção nacional da fibra, reconhecido como um dos mais sustentáveis do mundo quanto ao uso da água, já que praticamente toda a produção da matéria-prima utiliza apenas a água da chuva, num modelo conhecido como “sequeiro”.

Em outras palavras, na lavoura, na safra considerada no estudo – plantada em 2018 e colhida em 2019 – somente 8% da água, que fez com que as plantas se desenvolvessem e fornecessem a pluma que será transformada na indústria têxtil, vieram de cursos d’água como rios e lençóis freáticos através de sistemas de irrigação. Os demais 92% caíram do céu, pelas graças da natureza do cerrado, bioma que se ajusta certinho às demandas do algodoeiro: chuva no plantio e desenvolvimento, e seca na colheita.

“A água, assim como a terra, são os grandes ativos de um agricultor. Por isso, a gente tem de cuidar desse patrimônio natural, para garantir que continuaremos na atividade por muito tempo, e os nossos filhos e netos – se quiserem – podem também dar seguimento ao negócio”, pondera o presidente da Abrapa, Milton Garbugio.

Mas, para a surpresa de muitos, do número alcançado ao final do estudo, 5.196 litros por calça jeans, uma significativa parcela do recurso hídrico utilizado – 4.247 litros/calça jeans – cabe aos produtores rurais, mesmo que eles não abram a torneira. Depois de conversar com Claudio Mendonça, sócio-diretor da H2O Company, empresa responsável pela metodologia utilizada na mensuração, essa conta fica fácil de entender.

Verde, azul e cinza

O número final de litros por calça jeans produzida, em si, diz pouco. É preciso analisá-lo por um prisma de três cores: azul, verde e cinza. São indicadores utilizados na conta, que considera não apenas a quantidade do uso em litros para fazer uma calça jeans, mas a “natureza” desse uso. A água que vem da chuva, a que é captada dos rios, a que volta para os rios pelos esgotos industriais, a evaporada após a chuva na lavoura, aquela que gastamos todas as vezes em que lavamos a peça em nossas casas, dentre outras.

De acordo com o estudo, a pegada da cotonicultura é predominantemente verde. A água da chuva representa 50% na ponderação dos três indicadores. De todas as etapas da produção analisadas – plantio, tecelagem, confecção, lavanderias, consumidor e pós-consumo – esta cor aparece apenas na produção agrícola. “O cultivo com água de chuva, representado pela pegada verde, é um diferencial muito positivo do algodão brasileiro”, ressalta Claudio Mendonça.

Não adianta nada tentar comparar o número final (5.196 litros/calça jeans) aos resultados obtidos em outros países. “Cada lugar de produção tem características específicas. O importante é conhecer a necessidade de água na sua própria região, avaliar a disponibilidade do recurso e garantir o uso mais eficiente”, adverte Mendonça.

A pegada hídrica verde representa a água de chuva absorvida pelas plantas. A cinza é a água que a natureza precisa dispor para diluir os poluentes do processo produtivo quando ela volta para a natureza. Já a azul é a captada nos cursos d’água, descontando a que é devolvida no mesmo local, ou seja, considera-se a água evaporada ou devolvida em um lugar diferente de onde foi captada. Por exemplo, a chuva ou a irrigação molham a terra. Uma parte do líquido é absorvida e evapotranspirada pelas plantas, voltando para as nuvens em forma de vapor. É aí que contabilizamos a água verde (chuva) e azul (irrigação) do processo agrícola. Já a outra porção da água não absorvida pelas plantas, segue para os rios, através do escoamento superficial ou infiltração pela terra até o lençol freático, que é subterrâneo. Caso a água escoada contenha micropartículas de produtos químicos, como fertilizantes ou defensivos usados na lavoura, mais cedo ou mais tarde, essa água vai chegar aos rios, demandando água cinza para a diluição de eventuais poluentes que chegam até lá.

A questão, segundo Cláudio Mendonça, é que, seja pelo escoamento, conhecido como lixiviação, ou através dos esgotos industriais ou domésticos, esses poluentes vão demandar uma certa quantidade de água para ser diluídos na natureza, o que chamamos de água cinza. E quanto maior for a quantidade de resíduos, mais água será necessária para os rios conseguirem assimilá-los. Numa comparação bem banal, é como o açúcar que se acumula no fundo de uma xicara de café quando a gente exagera um pouco na quantidade. Ele não desaparece, ainda que se mexa muito com a colherinha. O princípio é exatamente o mesmo. Existe um ponto de saturação para diluir elementos na água e, quando é atingido, não há nada que resolva além de mais… água.

Medir para gerir

Conhecer a pegada hídrica, então, tem mais a ver com descobrir o quanto desse recurso natural será necessário para fazer com que uma atividade produtiva permaneça por muitos e muitos anos e, assim, agir de modo a garantir a manutenção desse insumo, que é natural, e cujo uso tem repercussão social e econômica também. Basicamente, é mensurar para melhor administrar.

“O Brasil tem uma condição muito especial em sua localização geográfica que determina um regime de chuvas muito favorável ao algodão, nas áreas onde atualmente ele é plantado, no centro-oeste do país. Estamos na mesma faixa latitudinal de continentes e países com desertos, como África, Austrália e Chile, e, no entanto, somos ricos em água doce. Isso se deve à influência da Floresta Amazônica e da cordilheira dos Andes, através dos chamados “rios voadores”, que direcionam as nuvens da Amazônia para o Centro-Oeste brasileiro. Conhecer a pegada hídrica de uma calça jeans nos ajuda a tomar decisões e a entender a importância da preservação desse sistema”, afirma. Mendonça explica que a manutenção da floresta é decisiva para a permanência do regime de chuvas no cerrado, e, consequentemente, para a sustentabilidade da cotonicultura.

Ferramenta

Na pegada hídrica de uma calça jeans, todo mundo faz parte do “pé” que deixa a sua marca. Logo, tem responsabilidade nesse número. Para a fundadora do Movimento Ecoera e consultora de sustentabilidade, Chiara Gadaleta, de nada adianta conhecer a pegada e guardar o número na gaveta. “Essa ferramenta não foi feita para ficar parada. Por isso, criamos a plataforma A Moda Pela Água, na qual a Abrapa e o movimento Sou de Algodão têm destaque, e onde participam diversas empresas que chamamos de Guardiãs da Água. Ela serve para que a gente converse sobre o quanto e o como usamos o recurso, e para que juntos encontremos soluções de forma setorial”, explica.

E por que a calça jeans?

Segundo Chiara Gadaleta, o clássico e democrático azul venceu a disputa contra a elegância casual da camiseta branca, como a peça querida dos brasileiros. “Fizemos pesquisas e entendemos que ele poderia ser protagonista dessa narrativa, para que pudéssemos começar a falar em pegada hídrica. A gente inaugurou um capítulo sobre o consumo de água na indústria da moda no Brasil, graças ao investimento que a Vicunha fez na metodologia e numa equipe de quatro empresas, que, em dez meses, foi a campo colocar em prática a metodologia da Water Footprint”, relata. “Não dá pra falar de jeans sem tratar de algodão. E o Algodão Brasileiro Responsável (ABR), programa da Abrapa, implantado por suas associadas, tem atributos muito interessantes e significativos”, complementa. Chiara lembra que essa é a primeira vez que se fala de um número nacional de pegada hídrica na calça jeans. “Vivíamos repetindo números de outros países, totalmente descolados da nossa realidade”, conclui.

Uma das mais tradicionais indústrias de denim no Brasil, a Vicunha abraçou o projeto, já que conhece de perto os temores de um déficit hídrico. “Com unidades instaladas no Nordeste, a preocupação com o uso responsável da água sempre fez parte da nossa estratégia, que engloba uma ampla plataforma de negócios sustentáveis, pautada pelo compromisso com a gestão de recursos escassos. Ao investirmos em projetos como a Pegada Hídrica Vicunha, queremos colaborar para a troca de informações e união do setor, com transparência, ética e responsabilidade”, afirma Marcel Imaizumi, diretor executivo Operações, Supply Chain e Novos Negócios da Vicunha.

20.03.2020
Imprensa Abrapa
Crédito da foto: Carlos Rudiney Mattoso

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